Síndrome de Behçet
A síndrome de Behçet é uma doença multissistêmica de etiologia desconhecida, caracterizada por aftas orais recorrentes e manifestações sistêmicas, incluindo aftas genitais, doença ocular, lesões cutâneas, envolvimento gastrointestinal, doença neurológica, doença vascular ou artrite. Acredita-se que a maioria das manifestações clínicas da síndrome de Behçet seja devido à vasculite. Entre as vasculites sistêmicas, a síndrome de Behçet destaca-se por sua capacidade de envolver vasos sanguíneos de todos os tamanhos (pequenos, médios e grandes) nos lados arterial e venoso da circulação.
Epidemiologia. A síndrome de Behçet é mais comum (e muitas vezes mais grave) na região que se estende do leste da Ásia ao Mediterrâneo. É mais comum na Turquia (80 a 370 casos por 100.000), enquanto a prevalência varia de 13,5-20 por 100.000 no Japão, Coréia, China, Irã e Arábia Saudita. As estimativas de prevalência nos Estados Unidos e na Europa variam entre 0,12 e 7,5 por 100.000. É um pouco mais comum nos homens na região do Mediterrâneo oriental e nas mulheres nos países do norte da Europa, e geralmente afeta jovens de 20 a 40 anos de idade. As populações de imigrantes e refugiados de áreas de alta prevalência de Behçet demonstram maior risco de desenvolvimento da doença.
Fisiopatologia. As teorias da patogênese da doença de Behçet atualmente sugerem uma etiologia autoimune. A exposição a um agente infeccioso pode desencadear uma resposta imune de reação cruzada. Os agentes infecciosos incluem vírus do herpes simples (HSV), espécies de Streptococcus, Staphylococcus e Escherichia coli.
O estudo das proteínas de choque térmico (HSPs) forneceu uma visão de possíveis mecanismos que contribuem para o desenvolvimento da doença de Behçet. O HSP-65, encontrado em altas concentrações em úlceras orais e lesões de pele ativas em pacientes com doença de Behçet também demonstrou estimular a produção de anticorpos que apresentam reação cruzada com espécies de Streptococcus presentes na boca.
O envolvimento sistêmico de órgãos múltiplos é observado principalmente através do desenvolvimento de lesões vasculíticas nas áreas afetadas. Essas áreas podem demonstrar evidências microscópicas de infiltração de tecido inflamatório com células T e neutrófilos.
Estudos de linfócitos T sugeriram uma resposta progressiva TH1. Ambos os linfócitos CD4 + e CD8 + apresentam maiores concentrações no sangue periférico, com elevações características e correspondentes de citocinas (interleucina [IL] -2] e interferon-γ [IFN-γ]). Os níveis séricos de IL-12 também mostraram ser elevados em pacientes com doença de Behçet, possivelmente ajudando a conduzir a resposta.
O papel específico dos neutrófilos na doença de Behçet tem sido difícil de caracterizar. Alguns estudos descobriram que a liberação de citocinas na doença de Behçet pode, por um mecanismo desconhecido, colocar os neutrófilos em um estado pré-excitado estático “preparado”, eventualmente desencadeado em hiperatividade por estímulos ambientais em um limiar mais baixo do que em indivíduos que não possuem a doença.
Manifestações clínicas. A característica clínica comum em pacientes com Síndrome de Behçet é a presença de úlceras mucocutâneas recorrentes e geralmente dolorosas, sendo comumente mais grave nos homens. A maior morbidade e mortalidade ocorrem na doença ocular (afetando até 2/3 dos pacientes), doença vascular (afetando até 1/3 dos pacientes) e doença do sistema nervoso central (afetando 10-20% dos pacientes). As manifestações cutâneas e articulares são comuns, mas a doença renal e o envolvimento do sistema nervoso periférico são raros em comparação com outras vasculites.
A maioria dos pacientes manifestam inicialmente ulcerações aftosas orais recorrentes que tendem a ser extensas e muitas vezes múltiplas. As úlceras são dolorosas e, em casos graves, podem limitar a alimentação. Elas são arredondadas e variam em tamanho de alguns milímetros a 2 cm. Elas apresentam bordas bem definidas, com uma base necrótica branco-amarela e podem ter eritema circundante. As porções externas dos lábios não estão envolvidas. A cicatrização de úlceras orais ocorre tipicamente de forma espontânea dentro de 1-3 semanas. No entanto, com lesões recorrentes, alguns pacientes terão úlceras presentes continuamente. Elas podem tornar-se menos comuns após cerca de 20 anos.
A ulceração genital, lesão mais específica para a síndrome de Behçet, ocorre em 75% ou mais dos pacientes. As úlceras são semelhantes às aftas orais e geralmente dolorosas. São mais comumente encontradas no escroto dos homens e na vulva das mulheres. A recorrência é geralmente menos comum, mas a formação de cicatrizes é frequente nas lesões genitais.
As manifestações cutâneas são divididas em duas categorias: um grupo inespecífico – foliculite, acne e dermatografia; e o grupo neutrofílico estéril – lesões vesiculopustulares, pústulas, lesões pustulares hemorrágicas (vasculíticas), placas e nódulos semelhantes ao eritema nodoso.
As lesões nodulares eritematosas, que se assemelham ao eritema nodoso, envolvem as pernas, nádegas, braços e pescoço. Estas lesões diferem do eritema nodoso por sua menor duração (1-3 semanas), por serem menos duras e terem uma distribuição clínica e perfil histopatológico diferente. No entanto, eritema nodoso e vasculite cutânea foram observados na síndrome de Behçet.
A doença ocular ocorre em 25-75% dos pacientes com síndrome de Behçet e, na maioria dos casos, progride para cegueira se não for tratada. Os pacientes do sexo masculino são mais acometidos e apresentam piores resultados visuais, mesmo com tratamento. A uveíte é muitas vezes a característica dominante da doença, geralmente é bilateral e episódica, envolvendo toda a úvea (panuveíte) e pode não se resolver completamente entre os episódios.
Patergia é definida como uma lesão ou pápula semelhante a uma pústula que aparece 48 horas após a picada da pele por uma agulha de calibre 20. Dermografismo é uma resposta à leve raspagem da pele que pode estar presente em alguns pacientes.
Diagnóstico. A síndrome de Behçet é diagnosticada na presença de ulcerações aftosas recorrentes, juntamente com manifestações sistêmicas características. Manifestações sistêmicas que levantam suspeita incluem doença ocular, especialmente hipopio, panuveíte ou vasculite retiniana; doença neurológica incluindo características do parênquima do sistema nervoso central; doença vascular, particularmente aneurismas da artéria pulmonar, síndrome de Budd-Chiari e trombose venosa cerebral; e pacientes com manifestações de patergia. A suspeita da síndrome de Behçet também deve ser considerada mais forte em pacientes com os sintomas que vivem ao longo do Leste Asiático até o Mar Mediterrâneo.
Não há testes laboratoriais patognomônicos da doença. Assim, o diagnóstico é feito com base nos achados clínicos. Na ausência de outras doenças sistêmicas, diagnostica-se a síndrome de Behçet em pacientes com aftas orais recorrentes (pelo menos 3x/ano) mais duas das seguintes características clínicas: aftas genitais recorrentes (ulceração aftosa ou cicatrizes); Lesões oculares (incluindo uveíte anterior ou posterior, células vítreas em exame de lâmpada de fenda ou vasculite retiniana); Lesões cutâneas (incluindo eritema nodoso, pseudo-vasculite, lesões papulopustulares ou nódulos acneiformes consistentes com Behçet); um teste de patergia positivo.
Diagnóstico diferencial. O diagnóstico diferencial de úlceras orais recorrentes inclui doenças reumatológicas como lúpus eritematoso sistêmico (LES) e artrite reativa; doenças gastrointestinais, como doenças inflamatórias intestinais e doença celíaca; condições auto inflamatórias, tais como, estomatite aftosa, faringite e síndrome da adenopatia cervical (PFAPA); infecções como o vírus do herpes simples (HSV) e o vírus da imunodeficiência humana (HIV); doenças dermatológicas como síndrome de Stevens-Johnson, penfigóide, pênfigo, líquen plano e dermatoses bolhosas lineares de imunoglobulina A (IgA); medicamentos como metotrexato e outros agentes quimioterápicos podem causar úlceras orais. A uveíte, uma característica da síndrome de Behçet, também pode ocorrer com doença de Crohn, colite ulcerativa, espondiloartropatias. A artrite assimétrica e não erosiva também pode ser vista em outras doenças reumáticas sistêmicas, incluindo lúpus eritematoso sistêmico (LES), artrite reativa, espondilite anquilosante, artrite idiopática juvenil, artrite psoriática e algumas vasculites.
Tratamento. O tratamento da síndrome de Behçet deve ser adaptado às manifestações clínicas de cada paciente. Os corticosteroides são considerados paliativos e úteis no controle de manifestações agudas. Os medicamentos citotóxicos geralmente são indicados em pacientes com doença ocular, do SNC e vascular. Os medicamentos biológicos também estão sendo usados em pacientes com estas complicações.
Doença ocular, do SNC e envolvimento de grandes vasos requerem corticosteroides e um agente de segunda linha, como uma medicação citotóxica ou biológica. Os corticosteroides têm um efeito supressivo sobre a maioria das manifestações, mas estão associados a efeitos colaterais que aumentam com a duração da terapia.
Os glicocorticoides são utilizados no tratamento de pacientes com doença moderadamente grave, podendo ser necessárias doses elevadas para doença aguda. O tratamento com pulso de doses elevadas (metilprednisolona 1g IV por 1-5dias, geralmente por 3dias) é frequentemente usado para doenças progressivas, graves ou com risco de vida.
A azatioprina é amplamente aceita como terapia inicial para o envolvimento ocular significativo, especialmente a doença do segmento posterior. A ciclofosfamida, a ciclosporina e a azatioprina podem ser utilizadas no envolvimento vascular, sendo a ciclofosfamida preferida para aneurismas arteriais. Os bloqueadores de corticosteroides, azatioprina, interferon-alfa, ciclofosfamida, metotrexato e fator de necrose tumoral (TNF-alfa) foram relatados como eficazes na doença do SNC. A ciclosporina deve ser evitada no envolvimento do SNC.
A colchicina é usada para tratamento e prevenção de ulcerações e para o tratamento da artrite. Corticosteroides, sulfassalazina e azatioprina também mostraram ser úteis nas ulcerações, e antagonistas de TNF-alfa e talidomida foram relatados como sendo eficaz em doenças resistentes.