Doença Do Enxerto Versus Hospedeiro
02/02/2025
A doença do enxerto versus hospedeiro, também conhecida como GVHD (do inglês Graft-versus-Host Disease), é uma complicação grave que pode ocorrer após um transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH) ou de medula óssea. Ela acontece quando as células imunes do doador (enxerto) reconhecem os tecidos do receptor (hospedeiro) como estranhos e os atacam. As manifestações cutâneas são a apresentação mais precoce e comum da doença. Mucosas, cabelos ou unhas também podem estar comprometidos. A GVHD pode ser classificada em aguda ou crônica, dependendo do tempo de manifestação e das características clínicas.
Epidemiologia. Além do transplante alogênico de células hematopoiéticas, procedimentos associados incluem: transplante de órgãos sólidos contendo tecido linfoide e a transfusão de hemoderivados não irradiados.
Fisiopatologia. Em 1966, Billingham detalhou a biologia do desenvolvimento da GvHD como um processo de três estágios: a) o enxerto/doador deve conter células imunologicamente competentes,
b) o receptor/hospedeiro deve ter antígenos teciduais não expressos nas células do doador, e
c) o receptor deve ser incapaz de montar uma resposta imunológica para eliminar efetivamente as células do doador.
Assim, durante o enxerto, após o condicionamento do hospedeiro, os antígenos teciduais do receptor são expressos para as células T do doador, o que leva à ativação, expressão e aumento da resposta imune das células T do doador ao hospedeiro; em outras palavras, ocorre aGvHD. O mecanismo subjacente ao dano tecidual na aGVHD é a secreção maciça de citocinas inflamatórias. São observadas citocinas pró-inflamatórias [fator de necrose tumoral (TNF) -α, interleucina (IL) -1β e IL-6], bem como o aumento da expressão do repertório de receptores (receptores de reconhecimento de padrões) em células apresentadoras de antígenos. Assim, a patogênese da forma aguda pode ser resumida em um processo onde finalmente, a destruição dos tecidos-alvo (pele, fígado, trato gastrintestinal) ocorre por meio de linfócitos T citotóxicos, células natural killer e fatores solúveis (TNF, IFN-γ, IL-1, óxido nítrico).
Avanços na compreensão dos mecanismos imunológicos da GVHD destacam o papel de células T do doador, especialmente as subpopulações de células T auxiliares (Th1, Th2, Th17) e células T regulatórias (Tregs). A desregulação dessas células contribui para a resposta imune exacerbada contra os tecidos do hospedeiro.
A importância da microbiota intestinal no desenvolvimento daAvanços na compreensão dos mecanismos imunológicos da GVHD tem sido cada vez mais reconhecida. Alterações na microbiota podem influenciar a ativação das células T do doador e a inflamação sistêmica.
Biomarcadores: Pesquisas recentes buscam identificar biomarcadores preditivos para o risco de GVHD como citocinas (IL-6, TNF-α), proteínas de choque térmico e microRNAs. Esses biomarcadores podem ajudar a estratificar pacientes e personalizar tratamentos.
Manifestações clínicas. No passado, a diferenciação da forma aguda da crônica estava ligada ao tempo de início após o HSCT (≤ ou> 100 dias); entretanto, essa é uma distinção um pouco arbitrária e a mudança dos esquemas de HSCT alterou o início das manifestações clássicas. Por exemplo, características de aGVHD e cGVHD podem ocorrer simultaneamente (sobreposição de GVHD crônica), ou características agudas podem aparecer primeiro após o dia 100 (GVHD aguda tardia).
O envolvimento cutâneo é a manifestação mais precoce da doença aguda e frequentemente aparece dentro de 2-4 semanas do transplante. Geralmente começa com máculas eritematosas e esbranquiçadas nas orelhas, palmas das mãos ou solas dos pés, bochechas, pescoço e tronco superior. À medida que a doença progride, as lesões tornam-se generalizadas, e a erupção geralmente assume aparência morbiliforme. Pápulas lisas ou hiperceratóticas, hiperpigmentação pós-inflamatória podem ocorrer e em casos graves, os pacientes desenvolvem eritrodermia generalizada, bolhas ou extensa descamação da pele.
Um sistema de estadiamento é usado para descrever a extensão do envolvimento cutâneo:
– Fase 1: < 25% de envolvimento da superfície corporal;
– Fase 2: envolvimento entre 25% a 50% da superfície corporal;
– Fase 3: > 50% de envolvimento da superfície corporal;
– Fase 4: eritrodermia com bolhas.
Após a pele, o próximo alvo mais frequentemente envolvido é o fígado, onde a doença causa elevação assintomática de bilirrubina, ALT, AST e FA. Pode envolver o intestino delgado e cólon distal, resultando em diarreia, sangramento intestinal, cólicas abdominais e íleo.
As manifestações da doença crônica são as seguintes: manifestações oculares (queimação, fotofobia e dor); manifestações orais e gastrointestinais (secura, sensibilidade a alimentos ácidos); pode afetar o esôfago (disfagia, odinofagia e perda ponderal insidiosa); doença pulmonar obstrutiva, (sibilância, dispneia e tosse crônica); manifestações neuromusculares (fraqueza, dor neuropática e cãibras).
A pele é comumente envolvida e, por isso, a doença cutânea crônica é classificada como líquen plano ou esclerótica. Alopécia cicatricial ou não cicatricial, pápulas escamosas no couro cabeludo podem ocorrer, além de anomalias nas unhas que vão desde distrofia ungueal ligeira até perda total das unhas.
Diagnóstico. O diagnóstico da doença aguda deve ser considerado em qualquer paciente que tenha sido submetido a transplante alogênico de células hematopoiéticas. A confirmação histológica pode ser útil para corroborar uma impressão clínica, já que a pele e o trato gastrointestinal são relativamente fáceis de biopsiar. Os principais achados histopatológicos incluem vacuolização da camada basal da epiderme e infiltrado linfocitário na derme superficial, além de queratinócitos apoptóticos epidérmicos.
Em algumas situações, pode ser necessária a biópsia para o diagnóstico da doença crônica, embora se reconheça que ela seja heterogênea tanto clínica como histologicamente, e que não existe um padrão histológico único.
Diagnóstico diferencial. Vários distúrbios podem apresentar características clínicas ou histopatológicas que se assemelhem a doença aguda, tais como: erupções medicamentosas, exantemas virais, eritema acral, necrólise epidérmica tóxica, dermatite de radiação, eritema multiforme.
Tratamento. Para a maioria dos pacientes com doença cutânea leve (grau I), recomenda-se o uso de esteroides tópicos. Em geral, os esteroides tópicos de média a alta potência são aplicados duas vezes ao dia na pele úmida. Já para os pacientes com doença grau II ou superior, recomenda-se o uso de glicocorticoides sistêmicos. O tratamento mais utilizado é a metilpredinisolona 2 mg/kg por dia em doses divididas.
As características que estão associadas a alto risco de morbidade e mortalidade na doença crônica e, portanto, são indicações para terapia sistêmica são:
– Envolvimento de três ou mais órgãos;
– Qualquer órgão isolado com pontuação de gravidade > 2;
– Trombocitopenia persistente (plaquetas < 100000)
– Doença crônica que evoluiu da aguda
Pacientes com doença crônica que apresentam indicação de terapia sistêmica devem usar prednisona na dose de 1 mg/kg/dia. Terapia adicional é indicada para pacientes com progressão após duas semanas de prednisona ou falta de resposta em quatro a seis semanas. Para tais pacientes, sugere-se a adição de um inibidor de calcineurina (por exemplo, ciclosporina, tacrolimus). A fototerapia com PUVA ou Narrow-band pode ser de ajuda em alguns pacientes.
Para a GVHD aguda, os corticosteroides continuam sendo a primeira linha de tratamento. No entanto, a resistência aos esteroides é um desafio significativo. Terapias de segunda linha incluem anticorpos monoclonais (como anti-IL-2R, anti-TNF-α) e inibidores de JAK (como ruxolitinibe), que têm mostrado eficácia em casos refratários.
Para a GVHD crônica, além dos corticosteroides, terapias direcionadas a vias específicas, como inibidores de BTK (bruton's tyrosine kinase) e inibidores de JAK, estão em investigação.
Terapias Celulares e Genéticas:
A terapia com células T regulatórias (Tregs) e células T modificadas geneticamente (como CAR-T cells) está em fase de pesquisa para prevenir ou tratar a GVHD.
A edição genética com CRISPR/Cas9 para modificar células do doador e reduzir sua capacidade de causar GVHD é uma área emergente.
Impacto da Doença do Enxerto versus Leucemia (GVL):
A GVHD está intimamente relacionada ao efeito enxerto versus leucemia (GVL), em que as células do doador também atacam células cancerígenas remanescentes. O desafio é equilibrar a prevenção da GVHD sem comprometer o efeito GVL.
Avanços em Transplantes com Doadores Alternativos:
Com o aumento de transplantes de doadores não aparentados ou haploidenticos, estratégias para reduzir a GVHD nesses cenários têm evoluído, incluindo o uso de PT-Cy e manipulação do enxerto.
Prevenção:
A aGvHD leva a morbidade e mortalidade significativas. Portanto, é crucial prevenir o seu desenvolvimento. A profilaxia da GVHD continua a ser um foco importante. O uso de inibidores de calcineurina (como tacrolimo ou ciclosporina) combinados com metotrexato ou micofenolato permanece como padrão. Novas abordagens incluem o uso de pós-transplante de ciclofosfamida (PT-Cy), que tem mostrado eficácia em reduzir a incidência de GVHD, especialmente em transplantes haploidenticos.
A depleção seletiva de células T no enxerto ou o uso de células T regulatórias (Tregs) expandidas ex vivo são estratégias promissoras em estudo.
Apoio Multidisciplinar:
O manejo da GVHD requer uma abordagem multidisciplinar, incluindo suporte nutricional, controle de infecções e tratamento de complicações como fibrose e insuficiência orgânica.
Perspectivas Futuras:
A personalização do tratamento com base em biomarcadores e características genéticas do doador e receptor é uma tendência crescente.
Novas terapias imunomoduladoras e celulares prometem melhorar os resultados e reduzir a morbidade associada à GVHD.
A GVHD continua sendo uma área de intensa pesquisa, com foco em melhorar a sobrevida e a qualidade de vida dos pacientes submetidos a transplantes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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